segunda-feira, 18 de março de 2024

335ª sessão: dia 19 de Março (Terça-Feira), às 21h30


“Cruel Vitória” para ver no cineclube 
 
Este mês de Março, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe quatro longas-metragens do cineasta norte-americano Nicholas Ray no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O corrente ciclo, intitulado “Mais do que cinema - Os filmes de Nicholas Ray”, continua terça-feira às 21h30 com a exibição de Cruel Vitória, com Richard Burton e Curd Jürgens nos papéis de um capitão e de um major que são entrevistados para liderar uma missão perigosa atrás das linhas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, na Campanha do Deserto Ocidental. 
 
Nicholas Ray nasceu Raymond Nicholas Kienzle Jr. em Galesville, no Winsconsin, em 1911, falecendo aos 67 anos em Nova Iorque, a 16 de Junho de 1979. Trabalhou no sistema de estúdios de Hollywood durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta, chamando a atenção dos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam também realizadores. 
 
Influenciou ainda toda uma geração de jovens cineastas durante a década de setenta, alunos e admiradores como os americanos Jim Jarmusch, Dennis Hopper e Jon Jost ou o alemão Wim Wenders, que terminou com ele uma última obra, Lightning Over Water
 
“Nunca antes as personagens de um filme pareceram tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes,” escreveu Jean-Luc Godard sobre este filme. “Confrontados com as ruas desertas de Benghazi ou com as dunas, pensamos de repente e pelo espaço de um segundo noutra coisa - os snack-bars nos Campos Elísios, uma rapariga de quem se gostava, tudo e mais alguma coisa, mentiras, a perfídia das mulheres, a futilidade dos homens, jogar nas slot machines.” 
 
“Porque Cruel Vitória não é um reflexo da vida,” continuava o franco-suíço, “é a própria vida transformada em filme, vista por detrás do espelho em que o cinema a intercepta. É ao mesmo tempo o mais directo e o mais secreto dos filmes, o mais subtil e o mais bruto. Não é cinema, é mais do que cinema.” 
 
“Como se pode falar de um filme destes,” terminava. “Qual é o sentido de dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman enquanto Curt Jurgens observa é montado com um brio fantástico? Talvez esta tenha sido uma das cenas durante as quais fechámos os olhos. Porque Cruel Vitória faz-nos fechar os olhos, como o sol. A verdade cega.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 13 de março de 2024

Bigger than Life (1956) de Nicholas Ray



por Alexandra Barros

Os romanos acreditavam que o álcool libertava as pessoas das amarras das conveniências sociais. Sob o efeito do vinho, as pessoas revelariam o que de facto sentem e pensam: In vino veritas / No vinho está a verdade. Bigger Than Life parece ter como subtexto (ou melhor, como um dos seus subtextos) uma variante deste adágio: In cortisone veritas / Na cortisona está a verdade. 

Pai e marido estimado, tanto quanto professor considerado, Ed vai-se transformando num déspota cada vez mais violento e psicótico, à medida que reforça secretamente a dose dos analgésicos que toma. A cortisona foi-lhe prescrita para aliviar as dores decorrentes de uma doença incurável, diagnosticada após um inesperado colapso físico. Quando tem alta do hospital, regressa a casa num estado de grande euforia. Está também invulgarmente egocêntrico e autoritário, comportando-se como se Lou, sua mulher, existisse para servi-lo. Até que o estado de graça que a convalescença lhe concedeu é dado por terminado. Quando Lou pousa violentamente a chaleira com que repetidamente trouxe água a ferver para preparar o banho exigido pelo marido, o espelho em que Ed se mirava, estilhaça-se em pequenos fragmentos. Ed está agora frente a frente com um puzzle desmontado do seu rosto sofrido. E, para se reconstruir, recorre aos comprimidos que eliminam instantaneamente as aflições da alma tanto quanto as do corpo. 

Mais do que o alívio das dores, Ed parece procurar na cortisona a sensação de agigantamento que a droga lhe proporciona. Para nos dar acesso ao turbilhão de emoções induzidas pela cortisona, Ray recorre a metáforas visuais onde o corpo transformado de Ed revela o seu mundo interior. Quando Ed regressa à escola, depois do internamento hospitalar, esta parece uma miniatura perante o seu corpo descomunal. Mais tarde, é a sombra desmesurada do seu corpo drogado que persegue, aterroriza e encurrala o próprio filho (Richie), numa casa tornada demasiado pequena para as suas enormes ambições. É tal o superpoder que a droga lhe parece oferecer, que Ed chega a convencer-se que sabe mais que Deus: “God was wrong”[1], brada num momento de total alucinação. 

Sob o efeito da medicação, Ed recusa “portar-se bem”. Quando obriga a mulher a escolher um vestido numa loja luxuosa, não se deixa intimidar pelos narizes empinados com que são recebidos. É rude, prepotente, gasta dinheiro de forma irreflectida. Na inauguração de uma exposição de desenhos dos seus alunos, afronta a comunidade escolar criticando de forma feroz as obras das crianças, os respectivos pais e a própria instituição a que pertence. Em casa, expressa a intenção de abandonar o lar e a família, onde se sente atrofiado, para se dedicar inteiramente aos seus interesses pessoais: o estudo e a investigação. O que se passará com o bom Ed? - interroga-se a família e os amigos. Nicholas Ray disseminou pelo filme vários indícios que insinuam que este aparentemente transfigurado Ed talvez não seja assim tão diferente do Ed “normal”. As manifestações de um desejo de evasão do sufoco do lar e da rotina, por exemplo, estiveram sempre lá: por toda a casa estão espalhados grandes cartazes com imagens de lugares longínquos. 

Num momento de lucidez, Ed apercebe-se das suas oscilações entre Dr Jeckyl e Mr. Hyde[2], mas a vontade de suprimir as dores fala mais alto que o propósito de sufocar Mr. Hyde. O preço elevado do poder da medicação acaba por ser cobrado. Provavelmente estava escrito na bula com as letras pequeninas com que se ocultam os senãos das pílulas douradas. Ed é novamente internado. Desta vez, o colapso é provocado pelos efeitos secundários das doses elevadas de cortisona. Não há curas milagrosas para os nossos males. As fugas à realidade oferecidas por poções mágicas, sejam elas legais ou não, são ilusórias. No fundo do túnel que abrem à frente dos consumidores parece existir A LUZ. Esta acaba por revelar-se um fogo que tudo consome. Ray tinge de vermelho a cena que culmina no desfalecimento de Ed. 

Quando Ed acorda da sedação induzida no seu segundo internamento hospitalar, reage fortemente à luz proveniente de uma grande lâmpada circular. Apavorado, suplica: “Apaguem o sol”. A cortisona deu-lhe asas, mas estas afinal eram de cera[3]. Sabe que uma próxima queda poderá ser fatal e chama a si a mulher e o filho, refugiando-se no porto seguro do calor familiar e da vida doméstica. De acordo com João Bénard da Costa, chegámos “ao momento dos filmes de Ray que normalmente provoca maior perplexidade: o aparente happy end.”[4] No quarto hospitalar, todos parecem aliviados com o regresso à normalidade. O filme fecha com Ed pedindo que Lou e Richie se aproximem mais e mais (“Closer, closer!”) e puxando-os a si como se quisesse encerrar-se dentro da família[5]. Que significado tem esta imagem? Será o óbvio e típico hollywoodiano final em que a felicidade foi (re)conquistada? Citando novamente João Bénard da Costa: com Nicholas Ray, “Nunca disso se trata, mas da suprema irrisão.”

[1] Deus estava enganado. 
[2] O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson 
[3] Ícaro, figura da mitologia grega, escapou do labirinto do Minotauro com umas asas de cera. Ignorou os avisos do pai para não voar muito alto; aproximou-se do sol, que lhe derreteu as asas, e caiu no mar, onde se afogou. 
[5] Em inglês, “closer” significa mais perto e “to close” significa fechar.



segunda-feira, 11 de março de 2024

334ª sessão: dia 12 de Março (Terça-Feira), às 21h30


“Atrás do Espelho”, com James Mason, na BLCS 

Este mês de Março, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro longas-metragens do cineasta norte-americano Nicholas Ray no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O ciclo, intitulado “Mais do que cinema - Os filmes de Nicholas Ray”, continua terça-feira às 21h30 com a exibição de Atrás do Espelho, a décima terceira longa-metragem de Ray, realizada em 1956 a cores e em Cinemascope, sobre um professor e pai de família, interpretado por James Mason, obrigado a trabalhar num segundo emprego para conseguir pagar as contas. Os seus desmaios frequentes levam-no a iniciar um tratamento experimental com cortisona. 

Nicholas Ray nasceu Raymond Nicholas Kienzle Jr. em Galesville, no Winsconsin, em 1911, falecendo aos 67 anos em Nova Iorque, a 16 de Junho de 1979. Trabalhou no sistema de estúdios de Hollywood durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta, chamando a atenção dos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam também realizadores. 

Influenciou ainda toda uma geração de jovens cineastas durante a década de setenta, alunos e admiradores como os americanos Jim Jarmusch, Dennis Hopper e Jon Jost ou o alemão Wim Wenders, que terminou com ele uma última obra, Lightning Over Water, de 1980, conhecido em Portugal como “Nick’s Movie - Um Acto de Amor”. 

“A minha finalidade,” disse Nicholas Ray sobre este filme, “não era falar da cortisona, mas da perpétua passagem do ‘remédio que pode ser um mal’ ao ‘mal que pode ser um remédio’. Aliás o tema interessava-me porque, na nossa época, havia imensa gente que acreditava em curas milagrosas: esperavam-nas no plano económico, político, religioso, emocional, depois de três sessões passadas deitados num divã mole; iam aos bares com a esperança de que com três copos tudo se recompusesse; iam à igreja com a esperança de que, depois de ouvir três sermões, tudo voltasse a entrar na ordem; entravam na política, convencidos que com três reuniões acabavam com todos os males do mundo.” 

“Mas não é assim que as coisas se remedeiam,” terminava o cineasta. “A minha personagem encontra um sucedâneo para a realidade quotidiana, mas esse sucedâneo leva-o a julgar-se o centro do mundo e a detestar todos os que amava e que o amam.” 

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

In a Lonely Place (1950) de Nicholas Ray



por Rute Castro

Nicholas Ray, nascido a 7 de agosto de 1911, na pacata cidade de Galesville, no Wisconsin, Estados Unidos, foi um dos cineastas mais queridos e influentes da sua geração. A sua paixão pela sétima arte levou-o a desbravar novos caminhos, desafiando constantemente as normas estabelecidas por Hollywood. Além de realizar o emocionante In a Lonely Place, Ray brindou o mundo com outras obras-primas, como Rebel Without a Cause (1955), protagonizado pelo jovem e talentoso James Dean, e Johnny Guitar (1954), com a icónica Joan Crawford. A sua personalidade excêntrica e apaixonada pela arte cinematográfica fez dele um cineasta verdadeiramente singular. 

O seu estilo era caracterizado pela utilização de planos longos, pela fluidez da câmara e pela ênfase na mise en scène. Mais do que meramente técnico, Ray empregava meticulosamente a mise en scène para transmitir profundidade emocional e subtexto narrativo nas suas obras. Além disso, era conhecido pela sua capacidade de extrair atuações memoráveis de seus atores, mergulhando nas complexidades da psique humana e explorando os lados obscuros da natureza humana, temas intrínsecos ao cinema noir

In a Lonely Place foi uma oportunidade para Ray explorar esses temas de forma complexa e desafiadora, além de oferecer uma crítica incisiva à hipocrisia presente na indústria cinematográfica de Hollywood. Ao criticar a hipocrisia dessa indústria, Ray não apenas contextualiza a história dentro de um cenário específico, mas também oferece uma crítica social mais ampla. O ambiente de falsidade e superficialidade em que os personagens operam serve como pano de fundo para explorar questões mais profundas sobre a autenticidade, a identidade e a alienação na sociedade moderna. Esta abordagem audaciosa e multifacetada do realizador ressoou profundamente entre os críticos de cinema, especialmente os influentes membros dos Cahiers du Cinéma

O trabalho de Ray é um marco no desenvolvimento do cinema noir, pois para ele este género não se limitava apenas a elementos estilísticos, era uma forma de expressão que mergulhava nas profundezas da alma humana, revelando as contradições e os conflitos latentes na sociedade contemporânea, representava mais do que apenas um estilo visual ou narrativo, era uma forma de arte que refletia as ansiedades e angústias da sociedade pós-guerra. Em In a Lonely Place, Ray capturou essa essência de forma magistral, explorando não apenas o submundo de Los Angeles, mas também os abismos da alma humana. A personagem de Dix Steele, interpretada brilhantemente por Humphrey Bogart, personifica as contradições e conflitos morais que permeiam o film noir. A sua luta entre o desejo de redenção e a inevitabilidade do seu próprio destino ecoa preocupações existenciais com que todos nós nos identificamos. Além disso, a relação entre Dix e Laurel Gray, encarnada por Gloria Grahame, é um microcosmo das complexidades das relações humanas no mundo de Ray. A tensão entre confiança e desconfiança, amor e paranoia, é habilmente explorada, revelando camadas profundas de significado que vão além do enredo superficial. 

Assim, In a Lonely Place destaca-se como mais do que apenas um filme noir excecional, é uma obra-prima que transcende os limites do género, oferecendo uma análise perspicaz da condição humana e das contradições inerentes à experiência humana. É através dessa lente crítica e sensível que o legado de Nicholas Ray continua a ressoar, inspirando gerações de cineastas e cinéfilos a explorar os recessos mais sombrios da psique humana com coragem e compaixão. 

In a Lonely Place é uma jornada emocional e intelectual que deixou uma marca indelével na minha memória cinematográfica. A interpretação magistral de Humphrey Bogart como Dix Steele é nada menos que arrebatadora, transmitindo a complexidade e a vulnerabilidade de um homem cuja fachada de dureza esconde uma alma atormentada. A química entre Bogart e Gloria Grahame, que interpreta Laurel Gray, é eletrizante, capturando a essência de um relacionamento carregado de tensão e desejo. Cada enquadramento meticulosamente elaborado por Nicholas Ray parece uma obra de arte em si mesma, revelando nuances emocionais e simbolismo subliminar que enriquecem a narrativa de forma profunda e comovente. Em particular, a cena do interrogatório de Dix é um momento de pura intensidade, onde a fragilidade da personagem é exposta de maneira visceral. É essa profundidade emocional e intelectual que torna In a Lonely Place numa experiência cinematográfica verdadeiramente inesquecível, uma obra que ressoa muito para lá das fronteiras do género noir e continua a inspirar reflexões sobre a condição humana. 

Considerado um dos melhores filmes noir de todos os tempos, In a Lonely Place é uma obra-prima do cinema americano dos anos 50. A realização de Nicholas Ray é exemplar, criando uma atmosfera claustrofóbica e tensa que acompanha a deterioração mental do protagonista. Humphrey Bogart e Gloria Grahame entregam atuações memoráveis, dando vida a personagens complexas e multifacetadas.

Nota: O cinema noir, também conhecido como film noir (do francês, "filme negro"), é um género cinematográfico que emergiu principalmente nos Estados Unidos durante a década de 1940 e alcançou o seu auge de popularidade na década de 1950. Esse estilo cinematográfico é caracterizado por uma atmosfera sombria, personagens moralmente ambíguos, narrativas complexas e visual marcante, frequentemente caracterizado pelo uso de luzes e sombras contrastantes.



domingo, 3 de março de 2024

333ª sessão: dia 5 de Março (Terça-Feira), às 21h30


“Matar ou não Matar” é a próxima sessão do Lucky Star 
 
Este mês de Março, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir quatro longas-metragens do cineasta norte-americano Nicholas Ray no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O novo ciclo, intitulado “Mais do que cinema - Os filmes de Nicholas Ray”, inicia-se terça-feira às 21h30 com a exibição de Matar ou não Matar, a quarta longa-metragem de Ray, realizada em 1950, sobre um argumentista de Hollywood que não tem um filme bem sucedido desde os anos trinta e com Humphrey Bogart e Gloria Grahame nos principais papéis. 
 
Nicholas Ray nasceu Raymond Nicholas Kienzle Jr. em Galesville, no Winsconsin, em 1911, falecendo aos 67 anos em Nova Iorque, a 16 de Junho de 1979. Trabalhou no sistema de estúdios de Hollywood durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta, chamando a atenção dos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam também realizadores. 
 
Ray influenciou ainda toda uma geração de jovens cineastas durante a década de setenta, alunos e admiradores como os americanos Jim Jarmusch, Dennis Hopper e Jon Jost ou o alemão Wim Wenders, que terminou com ele uma última obra, Lightning Over Water, de 1980, conhecido entre nós como “Nick’s Movie - Um Acto de Amor”. 
 
“Aquilo em que se repara em Matar ou não Matar é a vivacidade e a firmeza dos gestos e dos movimentos,” escreveu Bernard Eisenschitz no seu livro essencial dedicado ao cineasta norte-americano, Roman Américain - Les vies de Nicholas Ray, publicado em 1990, “a firmeza dos riscos tomados com os dois actores ao sabotá-los de forma deliberada.” 
 
“Bogart, uma presença física,” continuava ele, “envelhecido, despojado da sua aura, de pijama ou com as mangas da camisa enroladas por cima de braços peludos — já não é o ícone na inevitável camisa branca imaculada dos seus últimos filmes na Warner (Key Largo).” 
 
Num ensaio escrito para a revista britânica Sight and Sound, no Inverno de 1966, a actriz Louise Brooks diz que este filme “lhe deu um papel que ele podia interpretar com complexidade porque o orgulho na sua arte, o egoísmo, o alcoolismo, a escassez de energia golpeada com tacadas fulminantes de violência da personagem do filme, o argumentista, eram também partilhadas pelo verdadeiro Bogart.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ogin-sama (1962) de Kinuyo Tanaka



por Alexandra Barros

No século XVI, o Japão vive um período de grande instabilidade política. Dividido em centenas de territórios feudais (daimiados[1]) o país está mergulhado em guerras entre dáimios[2]. O xogum Toyotomi Hideyoshi procura unificar o país, mas os dáimios convertidos ao cristianismo representam uma ameaça à hierarquia social tradicional, fortemente ligada à religião xintoísta e cuja figura suprema (equivalente ao “Papa” cristão) é o Imperador. 

Takayama Ukon, dáimio e samurai cristão, é um nobre ostracizado pelo xogum e tornado alvo da sua perseguição. Ukon mantém uma forte e longa amizade com Sen Rikyû, famoso mestre da Cerimónia do Chá, com quem estudou as sofisticadas artes do ritual. Nessa altura, conheceu Ogin, filha adoptiva de Rikyû. Ogin alimenta desde então uma intensa e obstinada paixão por Ukon, mas ele é casado e muito devoto. 

A história do amor proibido entre Ogin e Ukon é o fio condutor do filme, mas nessa história cruzam-se outras linhas: a própria História do Japão, questões de fé e a identidade e cultura nipónicas. Tal como em filmes anteriores, a presença de elementos culturais e históricos da sociedade japonesa não é mera decoração. É através destes elementos que a realizadora expressa reflexões, preocupações, posicionamentos e estados de alma, tanto das personagens como próprios. Aliás, Tanaka está entranhada nas mais notáveis personagens dos seus filmes. O que é da primeira derrama-se nas segundas; interligam- se, confluem, confundem-se. 

Em Para Sempre Mulher, filme que fechou o primeiro ciclo que dedicámos a Tanaka, a realizadora deu um lugar central à poesia tanka, estilo clássico da literatura japonesa. Agora, neste seu sexto e último filme, esse lugar cabe à Cerimónia do Chá, ritual de grande importância na cultura tradicional japonesa. Kinuyo Tanaka respeita os tempos da cerimónia e dedica grande atenção às suas particularidades: gestos, objectos, significados. Serve-se dessa tradição para colocar em confronto duas visões e formas de estar no mundo. De um lado, o humanismo, simplicidade e sintonia com as leis da natureza de Rikyû; do outro, o despotismo, crueldade, presunção e vaidade ostensiva do xogum. A opulenta sala de chá de ouro de Hideyoshi ou a escolha criteriosa de convidados para a cerimónia do chá de Rikyû são particularmente eloquentes. 

Senhora Ogin contém, além do olhar para a identidade nipónica, outros assuntos recorrentes nas obras da realizadora: a condição e (sobretudo) a sexualidade feminina, casamentos arranjados, romances proibidos, mulheres que recusam conformar-se às convenções sociais e procuram viver de acordo com as suas convicções ou vontade individual. Partilha ainda, com o já referido Para Sempre Mulher, a atenção aos detalhes e o simbolismo associado a objectos, gestos, lugares e paisagens. Além dos objectos envolvidos na Cerimónia do Chá, uma cruz e um leque expressam, em diversos momentos, sentimentos não verbalizados ou acções que adivinhamos, mas a que não assistimos. A cruz, que vemos inicialmente no pescoço de Ukon, será transferida pelo mesmo para Ogin, “amarrando-a” à abstinência sexual e à fidelidade aos mandamentos cristãos. Ogin, porém, reiteradamente rejeitada por Ukon, virá a arrancar violentamente a cruz do pescoço. Mais do que às boas-venturas celestiais, Ogin aspira à felicidade terrena. Mais tarde, uma outra cruz caída no chão, revelará o que Kinuyo Tanaka decide deixar fora de campo. 

Tal como os objectos, também a luz, as cores e os trajes estão carregados de forte simbolismo, espelhando emoções ou antevendo destinos. Visualmente, o filme é belíssimo: admiráveis cores e efeitos de luz, paisagens notáveis, jardins meticulosamente concebidos, interiores minimalistas sofisticadamente apurados, esplêndidos quimonos. 

O uso da luz é especialmente simbólico numa cena premonitória do filme. Ogin assiste ao “calvário” de uma rapariga, que será crucificada por não se ter submetido aos desejos de um dáimio. A serenidade que transparece no rosto da rapariga impressiona Ogin que, num momento de epifania, decide tomar o controlo do seu próprio destino. A morte de Cristo na cruz é denominada Paixão e é vista como um exemplo supremo de amor altruísta. Jesus escolheu voluntariamente sofrer e morrer na cruz para salvar a humanidade e reconciliá-la com Deus, seu Pai. Morte voluntária, paixão, e amor altruísta fecham a história de Ogin. Ela escolhe a morte para salvar o pai; para não se submeter a um homem que não deseja e que despreza; para se manter fiel a uma inabalável, ainda que impossível paixão. Ogin morre, enfim, sob o signo da sua audaz fúria de viver[3].

[1] Daimiado - território governado por um dáimio.
[2] Dáimio - Senhor feudal, possuidor de terras e líder de hostes militares. Os dáimios, sob a dependência do xogum, controlaram grande parte do território do Japão, num modelo de governo que se manteve vigente entre cerca do século X até à segunda metade do século XIX. (Fonte: infopedia.pt)
[3] Fúria de Viver – Filme de Nicholas Ray, já apresentado pelo Lucky Star, sobre um grupo de jovens à procura do seu lugar num mundo de grande violência física e psicológica e, principalmente, absurdo. Voltamos a este grande realizador no próximo mês, com um ciclo que lhe é inteiramente dedicado.