quarta-feira, 13 de julho de 2016

Marnie (1964) de Alfred Hitchcock



por José Oliveira

Marnie, para muitos o último grande filme de Alfred Hitchcock, para tantos outros ou mais, o princípio do fim, causou sobretudo estupefacção por não se reconhecer o esperado em Hitch, a sua marca de génio, a mais valia de mercado. Ainda hoje é uma obra difícil pois para ela os chavões e a teoria feita não chegam, muito menos as expectativas. Tal e qual como aconteceu com o John Ford de Donovan's Reef ou o Nicholas Ray de We Can't Go Home Again. Manter quem gostamos ou simplesmente apreciamos na rota reconfortante ou nas temperaturas mornas é uma boa maneira de não exigirmos de nós grande coisa. Só que Marnie está construído e respira sobre perigosas temperaturas e em altas tensões, carregado de materiais opacos e desconhecidos, em solos não fiáveis e não legalizados. 

Sobre a grande questão da psicanálise e da sua utilidade – o remédio do mal e o mal do remédio – o grande Jean Douchet - muito para além da crítica: de uma só vez cruamente vândalo, poeta, padre falhado e aristocrata belo – já nos disse tudo o que há para dizer, deixando em elipse ou em irrisão um outro tanto perturbador que está dentro de cada qual. Na sequência capitular do filme – esse flashback a dilatar-se para a tela em extracção das entranhas e dos fundos da menina atormentada – o vermelho da tormenta evidencia-se a cor do sexo, do sangue e da morte. E o sexo, o sangue e a morte são assim as três entidades da negação do amor. Depois de tudo ser rememorado, vomitado entre raios e trovões, a menina pode finalmente tornar-se mulher. Largando a mãe, saindo de casa, virando as costas às criancinhas e à sua cantilena persistente, tornando-se indecente, nova ou acabada. E foi esse o trilho do filme, a sua via-sacra, que corresponde e é imagem da perda da inocência e da assunção do desejo. A menina decente que era uma fraude, uma mentirosa e uma ladra morre para entender que todo o amor comporta no seu âmago os monstros que o vermelho lhe escondia. Que todo o amor é necessariamente daquela cor, sem chance de coloração. O agigantamento da bocarra da morte e a entrada nela como em visita guiada sempre foi a base da fábula, do melodrama ou dos quintos dos infernos. 

Assim, o cabelo que a criança passa o tempo a pintar, os roubos substitutos, as associações imediatas, a ambivalência protectora e sugadora do cavalo de estimação, a literatura escandalosa e o niilismo do marido, a sua perdição também, estão interligados com o trabalho de câmara com que Hitchcock segue e perscruta a impossibilidade da compartimentação do sexo, do sangue, da morte e do amor; com a partitura com que Bernard Herrmann cria as distâncias do medo e o combate dos tempos; tudo na batalha principal e primordial que está no rosto de Tippi Hedren, sempre a extravasar para o mundo e para a construção social ou reconfortante, resumindo: puramente humana – o fogo e o gelo, o amor e a morte. Com as cores neutras e desbotadas do respeito sempre a trabalharem no apagamento, no disfarce, no travestir do encarnado garrido, delirante e sem regra, pobre água na fervura. 

Trilho e posta em cena dessa aceitação ou do suicido imediato é o resumo e o peso incomensurável deste arco-íris da existência onde o famoso suspense do mestre não chega de nenhum super-estilo da aventura extraordinária que os homens ousam e inventam melhor do que qualquer argumentista, mas sim do interior em escavações e em revelação antediluviana: da fixidez de um rosto e da paisagem perfeitamente vectorizada manifestam-se os incêndios e os naufrágios que se querem nas sombras. E são essas sombras que proporcionam um suspense raramente sentido porque raramente olhado: o terror do início e o terror do fim. Delirante estilo que em pouco mais de duas horas ousa filmar o que não se pode ver, o que não se deve ver. Atingindo a claridade das claridades: é o plano final. Cristalino e indecente. Boa viagem pelo mais torcido dos mapas, o ápice do grande mestre.

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