quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Electra Glide in Blue (1973) de James William Guercio



por José Oliveira

Sessão bastante especial esta pois trata-se ainda de recuperar uma obra ímpar dos anos setenta que estranhamente tem sido abafada pelos historiadores, pela crítica e mesmo por Cineclubes ou Cinematecas mais atentas. Electra Glide in Blue criou bastante polémica na altura por supostas posições ideológicas, para hoje se perceber que só falava dos temas mais antigos do mundo: solidão, medo, morte. São polícias e hippies em rota de colisão, poderiam ser índios e cowboys, crentes ou ateus. Trata-se do único filme realizado por James William Guercio, que logo se fartou de tanta ignorância e se virou para a música, colocando como produtor no mapa bandas como os Blood, Sweat & Tears, ou os Chicago. Robert Blake vive o papel da sua vida, num modo de acolher paisagem e homem que de uma assentada une John Ford, Michael Cimino e Clint Eastwood. Vanishing Point, que não passaremos desta vez por questões de timing, é um seu irmão directo e indissociável, e assim recomendamos que o vejam, para uma complitude lógica. John Wintergreen, o nosso guia boquiaberto pela catedral do Oeste no filme que vamos ver, e Kowalski, o escaldado do apocalipse protegido no seu asfalto de 1971, com certeza falam a mesma língua e não vão em cantigas de linguagem. 

O mundo revolucionário, mágico e genial do cinema americano dos anos setenta que orgulhosamente rompeu com os mestres e reduziu a pó o sistema de estúdios. Os que se auto-intitularam mavericks ou rebeldes, os que encheram a pança de estatuetas douradas ou os que garantiram a boa-vida com os incontáveis dólares. Uns não tiveram mais necessidade de voltar a pegar na câmara e quando voltaram a pegar nela já estavam anestesiados, outros venderam a Mãe à custa de santificação. 

Agora e aqui no nosso Cineclube, décadas passadas, tempo para os losers. 1971. 1973. Falo de Richard C. Sarafian, falo de James William Guercio. Arte (coisa!) de rua, mais do lado da rugosidade e do visceral das matérias e dos espíritos do que de algo tematicamente prosaico e higienizado, que jamais o é. Arte do tempo, do tempo perdido, do que dói e daquele que se receia. Longe das perfeições catedráticas, de decorativismos desbotados ou american dream de t-shirt. Vanishing Point. Electra Glide in Blue. Ambos bem mais revisões (lúcidas e sem sugamento) do western por quem sabe que John Ford é a bíblia do cinema americano e do Cinema por homens feito e habitado do que fascinação e utopia à maneira da balada inicial entusiasmante do Easy Rider de Dennis Hopper. 

Tocados pelo absurdo e estupefacção do modo de habitar e de confraternizar moderno, rodam paradoxalmente quase em seco, e se a velocidade e a potência das grandes máquinas podem humilhar os velhos cavalos dos cowboys, os seus condutores estão cada vez mais isolados. Andam e andam e erram e destroem-se na sua tremenda desilusão, talvez porque já são incapazes de encontrarem as mesas de família intimistas e calorosas do citado John Ford ou as tascas habitadas pelos taberneiros profissionais de Howard Hawks. Triste e enigmático efeito ao retardador. 

Vanishing Point ou o percurso pulsional, instintivo, irremediavelmente perdido, irracional e auto destruidor de um ex-, um daqueles seres que jamais descobriu para o que realmente serve e que no fugaz instante de radiação redentora se lhe viu estatelar no rosto o fatalista eclipse. Foi condutor de motos e de carros, foi agente da autoridade, andou pelas guerras tão longe e no filme de Sarafian só quer pôr um automóvel em San Francisco, saindo de Denver, em tempo recorde... nunca se vai saber porquê e o seu rosto impenetrável, desiludido e apaziguado como os muito novos ou os muito velhos não nos vai fornecer chaves. 

E se Sarafian ainda fez belos filmes posteriormente - Man in the Wilderness poderia estar neste ciclo - Guercio fez este Electra e arrumou as botas. Acusado nesses doces anos da contra-cultura e dos hippies de fascista e de reaccionário, foi preciso esperar umas boas décadas para se perceber de que lado estava o filme, o cineasta e o polícia personagem principal a que o incomparável Robert Blake dá presença, voz, olhar, peso cósmico. Esse minorca, inocente apesar de implacável, cavaleiro solitário Blake. De que lado então? Do lado da solidão e as únicas ganas do seu protagonista é assentar o rabo num confortável carro ao invés do banco da motorizada que dá calos, vestir um fato impecável e fechar-se em escritórios. Mas vai ser fácil perceber que tais empresas desejadas nada mais são do que ironia com os pés para a cova. 

Vanishing Point e Electra Glide in Blue são assim as mais belas e dolorosas rimas de um período, belas como o cisne e o canto final, e se o cego locutor da rádio de Vanishing afirma que para o imparável Kowalski a velocidade é a liberdade da alma e que a questão não é quando vai parar, mas sim quem o vai parar, Blake sabe e revela a outro invisual que a solidão mata mais do que uma Magnum .44. 

Lá para o final bifurcante do filme de Guercio, depois de um concerto em que vemos o pequeno agente das leis colocado no seu devido lugar de nada e de quase ninguém, perfeitamente espezinhado por essa massa supostamente feliz, passamos para dentro de um pavilhão. Ali, um monólogo exteriorizado de ressaca e desabafo para com o referido invisual. Num plano afastadíssimo vamos tendo consciência das sombras e das trevas que envolvem e corroem uma alma, de um silêncio na banda som que é sinal de uma consciência terminal interna. Cada vez mais silencioso o corpo de Blake e o movimento fílmico, já a pressentirem a fossilização derradeira. Só depois de algum tempo e de uma provisória paz possível é que a câmara vai avançar muito até a um plano próximo de conjunto, mas...é a impossibilidade de reconciliação, talvez ao mundo e ao próximo, e é de uma temperatura gélida. Tem a mesma função e a mesma força do que os muito grandes planos ao rosto granítico do Kowalski que rasga a América no Vanishing. Ao sangue encarnado que tem que correr já só se sente pedra e gamas de cinzentos a tenderem a negros. 

Em Electra alguém enlouqueceu não porque sim, mas porque assolou um medo terrível de se encontrar sozinho ao acordar e assim ter que atravessar o dia e os restos dos dias. E Kowalski preferiu o mais nefasto dos embates a ter de penar eternamente algo que não confessa, que não pode confessar. 

Comungando espaços desmesurados, de aridez indelimitável, os rostos e os músculos destes por nada românticos parecem sufocar, suam e quase explodem em vivências e em sentimentos que inexplicavelmente os ultrapassam. À prometida liberdade e respiração de "Easy Rider", estas estradas já assim não se reconhecem, nem simbolicamente nem em termos práticos; estes andarilhos já estão presos pelo desbarato dos afectos, adivinhando os computadores e “telemóveis” da alienação perfeita. Dos rasgados horizontes impassíveis e indiferentes de Vanishing até às místicas e esotéricas envolvências Ciminianas de Electra (os grandes pioneiros... Andrew Wyeth... Cimino... até ao nervo estertor de Peckinpah - a mais bela e mais evocativa, bucólica e magoadamente nostálgica via do cinema americano), de uma predestinação até a um acordo calado e interior, ambos os filmes têm a grandeza e a humildade de se instalarem em território sagrado, o do western ou o das fundações de uma nação, para experimentarem ou saberem como se anda lá e o que lá acontece volvida a possibilidade não escassa dos sentimentos e das dádivas. Em Electra, a cena em que chamam “chefe” a Blake e em que todos são índios, num paraíso perdido de uma possível comunhão logo quebrada pela lei sem qualquer grampo de escrúpulos. Em Vanishing, toda a dança sinfónica ou assimétrica das perseguições que a todo o instante pressentem em contra-campo massacres de outros tempos não muito remotos. Os filmes querem saber o que se passa agora nessas antigas terras dos cavalos, gados, onde quando se tinha de ir de um ponto A a um ponto B o sangue podia secar e era questão de vida e de morte e era para sobreviver a todo o custo com possivelmente alguém à espera – isto é, emocionalmente e esteticamente.  

Kowalski – fúria de uma vida de um transcendente Barry Newman – ou amou uma e uma só mulher para uma eternidade qualquer ou a agudez do desespero é tão profunda que as delicadas carnes que se lhe oferecem já não lhe provocam qualquer vontade. O filme em vez de escancarar só escurece e torna dúbios tais retraimentos, o porquê de se entregar a narcóticos e a nadas do que a tais céus. Mumificado ou zombificado, a chama que outras horas tanto ferveu está agora estagnada ou só corre em conformidade com o pé no acelerador que renuncia a acalmias rumo a vislumbres de mortes. Diferente ou não é o John Wintergreen composto por Blake, das poses de garanhão que fode a também perdida puta do povo pretendida boneca, até ao sorriso infantil com que macaqueia jovens belas e frescas, passando pelo sério semblante que é protecção e generosidade, é como o Kowalski de Vanishing, um homem de interior quebrado e convulso mesmo que já de decisão tomada, e a maneira como Guercio o filma na largada, em fragmentos e estilhaços, tal como quando Kowalski é estátua paralisada no imenso meio que é palco privilegiado para a perda, só confirmam uma doença que é tanto primitiva como nascente ou potenciada pelos ares daquele tempo. 

Em Vanishing, diz ainda o speaker, os polícias fascistas perseguem o solitário herói. Em Electra pode-se pegar no discurso iniciático do polícia chefe para com os novatos, em que este lhes chama desde comunistas a fascistas ou a porcos e coisas que tais, para se perceber que aquele polícia solitário e também o seu amigo que se mata porque não parece muito mais alegre, podem tanto ser vítimas dos hippies maus como de outros maus quaisquer que gravitem ao seu lado de gravata. Preto e branco estilhaçado, maniqueísmos estilhaçados. Genuíno gesto emancipador. 

Cena final de Electra que fala com a de Vanishing e assim perscruta os podres desta monstruosa sociedade que corrompe o mundo por indiferença, mundo que é belo como belas são as montanhas escarpadas aos ventos e aos pós do Monument Valley, cena final: Robert Blacke não morre com um brutal tiro de caçadeira de um alternativo, morre é de Solidão. De uma indizível solidão, muito muito mas mesmo muito mais mortal do que qualquer arma de morte. Assim como Kowalski se decide entregar no altar de uma humanidade que só o lixou, indo ao encontro de pérfidos monstros metálicos. 

À imensa fragilidade destes frágeis (e extremamente fortes) seres em derrapagem (ou já com aquelas certezas e convencimentos do que não pode ser de outro modo e assim mesmo é sem dúvidas) estruturas e construções formais que assentes em princípios sólidos e claros, e assim muito clássicos e nunca gritados apesar das ousadias, tantas vezes vibram e tremem por essa moral de nunca impôr egos e sim buscar justos caminhos precisamente nos caminhos percorridos, geograficamente e interiormente, sendo certeza bem material e visível essa operação do olhar e do acolhimento e colhimento de uma fria câmara a tão preciosos e raros sentimentos. Em Electra a sequência da perseguição ao grupo motard é perfeitamente funcional e até banal, mas isto e outros despachos servem apenas para franquear vias a desgraças irreparáveis e comoventes. Uma construção que tudo absorve. Sem ilusões. 

E assim...uma singular singeleza. E assim...John Ford e Eastwood. Tão singular que teve de ser apagada. Resíduos ou pedras no sapato que arriscavam revelar a outra face da moeda que se quer sempre escondida – basta ler o supracitado puteiro demagógico de Peter Biskind sobre tal década. 

Na indiferença e imperturbabilidade dos olhares finais de Vanishing e de posteriores rituais funéreos, ou na estrada que distende e dilata e eterniza os tempos em Electra, só se acentua o inescapável: esses pontos perdidos nos cosmos que somos nós. A qualquer momento vencemos montanhas, a qualquer momento trememos. Bem-aventurados os que dispensam as pobres palas dos pobres burros e ousam olhar para os lados.

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