segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

42ª sessão: dia 10 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


Samuel Fuller foi, com Nicholas Ray, o mais temperamental dos realizadores que começaram no período clássico de Hollywood e não pararam de experimentar, estilhaçar e rasgar a modernidade e os horizontes de uma arte que como a vida tem sempre tudo para ser descoberto e redescoberto; finalizou a sua obra já nos anos 90 e em Portugal. Homem do jornalismo, que foi à guerra e a todos os continentes, às sarjetas mas também forneceu a Godard uma das mais belas definições do que pode ser o cinema quando vem de dentro. Homem que se desfez e praticamente se imolou para passar para a tela a experiência nua e crua. 

Em White Dog, que será a sessão desta semana, seguiremos alguém que encontra um pastor alemão branco lindíssimo e afável, mas ferido, cuidando dele até descobrir que foi treinado por gente cruel para matar negros. Mas para além do poço sem fundo da maldade humana em revelação, para lá de todas as metáforas associadas e da perene irresolução da nossa raça, é também uma grande e inaudita história de amor. 

Para a apresentar, Tag Gallagher, o demencial e ciclópico crítico americano, entregou-nos um dos seus maravilhosos ensaios. De White Dog, em Why Samuel Fuller?, disse que "is not 'dog bites man', it’s 'man bites dog'".

Inácio Araújo, grande crítico brasileiro, escreveu na Folha de São Paulo de 9 de Junho de 1988 que "Cão Branco é outra entrada de Fuller pela porta dos fundos, esta por onde passam os empregados e tudo mais que não deve enevoar a paisagem impoluta que o olhar oficial procura fixar das coisas. Como o tema é o racismo, o autor foi ao que de mais profundo e irracional este fenômeno poderia produzir, o cão branco: entidade surgida - conforme explica o filme - para perseguir escravos fugidos e, mais tarde, prisioneiros negros. O cão branco situa-se, assim, um estágio além do linchamento, na medida em que é produto da sistematização do ódio: seu caráter é permanente para o cão condicionado a atacar negros e, em princípio, irreversível. Sua pele é o lugar onde se inscreveu séculos de uma história de intolerâncias - é sua poesia e seu produto.

"Se o assunto não é indiferente ao filme, sabe qualquer espectador com um pouco de prática que é fácil um bom tema morrer nas mãos de um diretor rotineiro. É tudo que Fuller evita. Sua carreira tem sido um corpo-a-corpo com a linguagem do cinema; baseia-se em grande parte na capacidade de reverter as dificuldades causadas pelos pequenos orçamentos que tem a seu dispor e transformá-las em virtudes. Cai fora a figuração, por exemplo, até porque um filme se faz com idéias. Em compensação, coloca-se no centro da história o próprio cão: o branco de seus pêlos, que em determinado momento podem se encher de manchas de sangue; sua expressão, variando da ternura externa à máxima ferocidade, a elegância do porte: qualidades que nem por um instante nos deixam esquecer que sua marca essencial é o silêncio - o curto-circuito total com a razão, que o torna imprevisível. Como contraponto ao cão branco, Fuller fixa a figura de Keys, o domador de animais negro, que aceita o desafio de eliminar o condicionamento do cão."

Louis Skorecki, em diálogo consigo mesmo, falou do filme e de Fuller para o Libération, por ocasião da sua passagem na televisão francesa, dizendo que é "o último grande Fuller. Dez anos a rodar tele-filmes sujos, e dá a sua reverência.

Tu não preferias a televisão ao cinema?

Um tele-filme não é televisão. ­ 

É o quê, a televisão? ­ 

As notícias, os documentários, as séries, os reality shows, isso tudo. ­ 

E um tele-filme, é o quê ? ­ 

Um tele-filme, é um tele-filme. Um género em si mesmo, se preferes. ­ 

Fuller, é um grande cineasta ? ­ 

Entre 1949 (I Shot Jesse James) e 1959 (The Crimson Kimono), é um muito grande cineasta. ­ 

As datas certas, não é ? 
  ­
Sim. ­ 

Espera um minuto. Merrill's Marauders, não é de 1962 ? ­ 

É uma excepção. São precisas.
 ­
Shock Corridor ? The Naked Kiss ? ­ 

Gance de segunda revisto por Godard. ­ 

White Dog ? ­ 

Um filme cego, um filme clarividente. ­ 

A partir de Romain Gary, é isso ? ­ 

É isso. O seu mais belo argumento. ­ 

Uma história de cão racista, é isso ? 
 ­ 
Sim. Um cão branco que mata Negros. ­ 

Um pouco simplista, não ? 
 ­ 
Como Fuller. 
 ­ 
E os actores ? ­ 

É um filme de família. Christa Lang está lá, e pequena Samantha igualmente. O velho Fuller também. 
 ­ 
Ele estava um bocado senil lá para o fim, não ? 
 ­ 
Não. Fez o mais belo filme sobre o massacre dos judeus da Europa de Leste. 
 ­ 
O Shoah ? ­ 

Não. 

O Holocausto. ­ 

É a mesma coisa. ­ 

Não. ­ 

Pode-se ver ? ­ 

Não. O idiota do Arte só passou a parte filmada por Fuller sobre a libertação dos campos. O mais importante, é o que falta, quando ele conta o seu filme sobre o Holocausto. ­ 

Pode-se ver ? ­ 

Não. Nunca o filmou. Morreu antes. Sabes que nasci num campo ? ­ 

Estás a gozar comigo ? ­ 

Não."

Até Terça-Feira

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