sábado, 11 de fevereiro de 2017

47ª sessão: dia 14 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Regressamos a Michael Cimino e às eternas questões no seu quarto filme, Year of the Dragon. Numa Chinatown recriada de forma extraordinária em estúdio, o americano atira-nos outra vez para a selva dos sentimentos e dos impulsos, dos avanços sem recuos e dos erros desmedidos e grandiosos.

Na nossa próxima sessão, Mickey Rourke atirar-se-á de cabeça num combate sem tréguas à máfia chinesa mas que parece fruto de um ressentimento profundo em relação a outras coisas, mais pessoais, ou enterradas no inconsciente dito colectivo, sobre outras guerras, perdidas nas décadas e nos séculos e que edificaram um país a ferro e fogo. Percámo-nos...

Para nos apresentar o filme, teremos Álvaro Martins, veterano da blogosfera cinéfila portuguesa e grande admirador de Michael Cimino.

Cimino disse a Marc Chevrie, Jean Narboni e Vincent Ostria dos Cahiers, a propósito do filme, em 1985, que "trabalhei durante muito tempo numa espécie de western sobre o papel dos Chineses na construção do caminho-de-ferro que liga o Panamá ao Alasca. Mas nunca se pôde realizar o filme. Por seu lado, sem que eu soubesse, Dino De Laurentiis interessava-se há vários anos por um projecto sobre Chinatown em Nova Iorque, e pedira vários argumentos com que não estava satisfeito. Quando Year of the Dragon foi publicado, ele comprou os direitos do livro e contactou-me com um argumento bastante fiel ao romance. Recusei porque não gostava verdadeiramente do livro; não acreditava na personagem. Só aceitei utilizar o livro como ponto de partida, imaginando uma história diferente, com o que ele acabou por concordar. Concebi Year of the Dragon de uma maneira semelhante à de The Deer Hunter. Começámos a preparação material do filme ao mesmo tempo que escrevíamos o argumento. Evidentemente que se trata de um princípio arriscado porque pressupõe que se tenha uma ideia precisa do aspecto visual do filme antes de o começar. Para The Deer Hunter eu tinha enviado o decorador à Tailândia com uma lista de coisas que ele devia encontrar antes mesmo de ter um argumento. Enviei outro para o Ohio, em Pittsburgh, outro para Washington também com uma longa lista. Foi a mesma coisa para Year of the Dragon. O lado positivo de tudo isto é que estando-se em contacto diário com as pessoas sobre quem se vai fazer um filme, temos a oportunidade de observar muitos detalhes, acumular mais informações que se podem, em seguida, incluir no filme. E Year of the Dragon é certamente o filme que mais beneficiou deste método e que mais se enriqueceu com ele, quer seja no sentido do lugar ou na profusão de detalhes."

Quando o filme saiu, Serge Daney escreveu que "Cimino fala muito do "sonho americano". Existiu alguma vez e, se sim, porque se perdeu inexplicavelmente? Surgiu então a questão do ressentimento: "de quem será a culpa?". A culpa é dos Vietnamitas, soprava The Deer Hunter. É a sua barbárie (de raiz) que "acordou" a barbárie dos soldados americanos. É o outro vietnamita o responsável pelo ideal US ser calcado aos pés. Como nos pátios de recreio onde ecoa o eterno "foi ele quem começou!". 

"Se (é ainda apenas uma hipótese) há uma decadência americana e se, como defende Octávio Paz, "ela constitui para eles [os Americanos] a porta de entrada na história", se mesmo "ela lhes traz o que eles sempre procuraram: a legitimidade histórica", Cimino é o cineasta que acompanha esta decadência e também o que a mais trabalha. Pela primeira vez, alguém conta a segunda história dos Estados Unidos. Uma epopeia, certamente, mas a do ressentimento. O fim do sonho americano liberta as tribos americanas. Algures, entre a reanimação ascética do sonho e a exibição folclórica das tribos, oscila Cimino. 

"Year of the Dragon é pois a continuação lógica de The Deer Hunter. Dez anos passaram e Stanley White (Mickey Rourke) é o polícia exaltado que "fez o Vietname" e que não regressou. Delirante mas metódico, conduzindo uma guerra pessoal, evidentemente racista. Porque esta guerra já não releva da metafísica conradiana (no fundo que "outro" inconfessável sou eu?) mas de um exorcismo securitário, de uma cruzada de polícia zeloso, tendo macerado em excesso o ódio de si mesmo."

Robin Wood, para o Cinejournal, escreveu que "o que é impressionante em Year of the Dragon é a sua recusa em tentar sequer resolver, reconciliar ou organizar de forma significativa as suas contradições: balança entre denunciações do herói e celebrações dele. O fracasso da interpretação central (não é culpa de Rourke) tem consequências que complicam ainda mais a reacção ao filme. Uma é que o vilão, Joey, dada a beleza física e a presença carismática de John Lone, se torna numa figura muito mais atractiva do que Stanley White - muito insidiosamente, já que ele é moralmente vicioso, um explorador sanguinário e impiedoso. Outra é que as personagens empáticas que denunciam e se opõem a Stanley - e são efectivamente vítimas dele - ganham força adicional. 

"O que é que aconteceu aqui? Sentimo-nos tentados a argumentar que Cimino, depois das audácias formais/narrativas de Heaven's Gate, foi forçado a recuar para os apertos e para a oclusão da narrativa clássica, e respondeu produzindo um trabalho cuja incoerência incorpora um protesto (seja consciente ou 'intuitivo') contra a imposição. Penso que não.... Comparem Year of the Dragon com To Live and Die in LA. O filme brilhante de Friedkin não tem nenhum dos problemas do de Cimino porque - com base nas reservas de niilismo e cinismo que foram um traço determinante do seu trabalho - ele é capaz de definir uma atitude perfeitamente rigorosa e coerente em relação ao herói individualista, e em relação à civilização da qual ele é um representante, uma de repulsa total. Cimino- para o bem ou para o mal - seria absolutamente incapaz de fazer tal filme. O percurso em direcção à afirmação tem sido essencial para todo o seu trabalho até ao momento, e ele tem o infortúnio de aparecer numa sociedade onde não há mais nada para afirmar. Ou, mais precisamente, tudo o que podia ser afirmado validamente era oposição construtiva, o desenvolvimento de uma ideologia radicalmente diferente, uma empresa da qual Hollywood, como sabemos, é e tem que ser inamovivelmente inimiga."

Até Terça!

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