quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Harry & Son (1984) de Paul Newman



por João Palhares

Voltamos a Paul Newman, depois de Exodus e The Hustler, no mês de Junho. Voltaremos a ele daqui a duas semanas na sequela que Scorsese fez do filme de Rossen. Porquê tantas vezes? Foi coincidência, só escolhemos os filmes sem pensar de imediato em Newman, pensámos primeiro em Preminger, Rossen, Scorsese... Mas podíamos mesmo pensar nesses filmes sem pensar em Newman? O que nos levou a eles talvez tenha que ver com o que Robert Shaw arriscou dizer a Grover Lewis (um dos expoentes máximos do chamado "New Journalism") durante a rodagem de The Sting, sobre o seu colega de profissão: “não se pode definir este tipo de magnetismo que ele tem tal como não se pode definir a espécie de magnetismo animal que Olivier tem, ou um ou outro mais. Mas ele tem-no. Não sei exactamente o que é. Caralho se sei o que é, mas está lá com muita força. E, ah ... é uma qualidade que é tão poderosa que não sei de onde é que vem. Muitos bons actores nem sequer a têm, no entanto questiono-me a mim mesmo porque não sei se se tem vindo a construir até agora um bocado como um mito na minha cabeça. Quero dizer, eu não sei o que pensaria, sabes, se ele entrasse aqui quando tinha 18 anos ou coisa assim. Eu definitivamente não sinto, como actor, que ele esteja a dominar de alguma maneira, de todo. Digo francamente que o que ele faz me parece sempre melhor nas dailies do que acho na altura. Isso é por causa da própria qualidade de que estamos a falar. Há qualquer fotogenia—uma química. Que diabo é? Não sei,— mas ele tem-na certamente. Se Newman fosse um actor completamente desconhecido e tivesse duas linhas de diálogo num pastelão, destacava-se completamente." 

Também nós fomos atraídos como um íman por essa qualidade indefinível de que fala Shaw, mas se a carreira de Newman como actor atrai tanto as pessoas, o mesmo não se pode dizer da sua carreira de realizador, que é bem menos falada e discutida, tanto hoje como na altura. Mas está lá o mesmo fascínio, e os instintos químicos de Newman transportam-se para a realização, sabendo o que usar e guardar do trabalho dos seus actores na montagem final e como chegar a esse resultado durante a rodagem. John Malkovich e Karen Allen em The Glass Menagerie, todo o elenco de The Shadow Box. Joanne Woodward, a mulher de Paul Newman, tão diferente como a noite do dia, a madrugada do entardecer e do luscufusco, em Rachel, Rachel, The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds, The Shadow Box, Harry & Son e The Glass Menagerie, cinco dos seis filmes realizados por Newman. Os trajectos dessas personagens e desses filmes são muito parecidos por descreverem, durante a sua duração, o que motiva as decisões importantes desta vida e a viragem que resulta de tudo isso. O milagre de The Shadow Box dá-se quando a personagem interpretada por James Broderick, Joe, diz à mulher que “I’m going to die, Maggie”, confirmando aquilo que já podíamos adivinhar ao ver as personagens de Christopher Plummer e Sylvia Sidney, situando finalmente aquelas cabanas como uma espécie de asilo para doentes terminais e, mais importante, convencendo-se por fim a si próprio dessa terrível realidade, que é aquilo por que se batem todas as personagens do filme, dos que vão ter que ir aos que vão ter que ficar. Que Newman tenha conseguido chegar a este momento e o tenha revestido dessa importância só atesta o seu enorme talento como observador e como realizador, que é o que é um cineasta. Como quando se parte o unicórnio de vidro em The Glass Menagerie e a personagem de Karen Allen se transforma. Ou como quando Harry lê a carta que o filho recebeu, percebe tudo o que não tinha percebido até àquele momento e se desfaz em lágrimas no carro. É no filme que hoje vamos ver, Harry & Son

Os subúrbios e os conflitos geracionais e familiares de Harry & Son podem-nos levar em muitas direcções: para Elia Kazan e Nicholas Ray, para o Actors Studio, para a política, para a história, para as injustiças no coração da sociedade americana, para as canções de Bruce Springsteen (como fez o Matheus Kerniski) ou para a obra de John Fante, que em nome próprio, como Arturo Bandini ou como Dominic Molise, queria a felicidade e o mundo e acabava por os encontrar onde menos esperava: numa misturadora velha que acaba por revelar o que de melhor havia nos homens (1933 was a Bad Year); numa lareira enorme e desnecessária mas que traz belas lembranças e segurança para o futuro e para o bébé que vem a caminho (Full of Life); numa escola primária que ficará até muito depois da morte de quem a fez com as próprias mãos, como testemunho da sua passagem por este mundo (Brotherhood of the Grape). Nestes três livros, aparecia também o seu pai, ora Nicola Molise, ora Svevo Bandini, ora mesmo com o seu nome, Nicola Fante. Empreiteiro orgulhoso, autor dos mais belos e resistentes edifícios da sua pequena cidade, que construiu com as próprias mãos, nunca aceitava completamente a decisão do filho em tornar-se escritor. E nestes termos, pai e filho discutiam e batiam-se em casa, transparecendo sempre o amor que tinham um pelo outro, por mais que o quisessem esconder. 

Também Harry Keach (a personagem de Paul Newman) tenta convencer o filho, Howard (interpretado por Robby Benson) a arranjar um emprego como deve ser, mas apesar de este tentar, para agradar o pai, as experiências nunca correm bem. Harry está a perder a vista e é despedido por causa disso. “It’s a real hoot. I wan’t to work and can’t, you can and don’t,” diz ele depois de Howard perder mais um emprego. Mas o filho continua na lavagem de carros e a martelar na máquina de escrever, acalentando uma carreira de escritor que parece não chegar a lado nenhum. Preocupado com as necessidades do filho a longo prazo depois de já não estar cá para cuidar dele, Harry não o consegue ver como o adulto que é, mas ainda como uma criança indefesa e estúpida que lhe bebe metade das cervejas e as deixa mortas no frigorífico. Talvez seja por isso que depois de Howard receber o cheque pelo seu conto, chamado “Harry” por causa do pai, de mostrar imensa coragem ao receber como seu o filho de Katie e se mostrar capaz de cuidar de si próprio e dos que ama, Harry finalmente possa ir para o outro mundo, tendo-se aguentado neste só para certificar que o seu filho dava conta do recado, como a personagem de Sylvia Sidney em The Shadow Box, que se aguenta apenas pela esperança de poder rever a sua filha. 

E Ossie Davis, Wilford Brimley (o Dr. Blair de The Thing, talvez o reconheçam), Ellen Barkin, Katherine Borowitz, Joanne Woodward, Robby Benson e Paul Newman estão em estado de graça para nos dizer que afinal é possível “dar aqueles pequenos passos na vida que podem levar a algo maior”, como diz Newman. Ou, como escreve John Fante, quando aprende a sua lição em 1933 Was a Bad Year: “peguei no rolo de dinheiro a voltei-me para a misturadora. Estava batida e martelava como as mãos do meu pai, uma parte da vida dele, tão estranhamente antiga, como se de um país distante, de Torricella Peligna. Pus os meus braços à volta dela e beijei-a com a minha boca e chorei pelo meu pai e por todos os pais, e fihos também, por estarem vivos nessa altura, por mim, porque agora tinha que ir para a Califórnia, não tinha escolha, tinha que me redimir.”

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