quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

The Right Stuff (1983) de Philip Kaufman



por José Oliveira

Há uma cena decisiva nas três horas que dura The Right Stuff e nos vários anos e missões que aborda, e nem se trata de um raide visionário, de alguma catarse ou maravilhamento; visto agora, passados os conflitos diplomáticos em causa e as grandes corridas ao espaço, o momento em que o astronauta de Dennis Quaid está a ser entrevistado a propósito de ainda não ter sido lançado como os seus companheiros ou como o macaco, e não consegue dizer por um triz quem considera o melhor de todos os pilotos, expõe claramente a demanda que Philip Kaufman, o cineasta que se zangou com o escritor Tom Wolfe e com o grande argumentista William Goldman, ousou: contrapor o romantismo, o lado solitário e selvagem da verdade e da verdadeira causa ao espectáculo global do projecto Mercury que é tratado em registo que beira o documental, para assim se perceber que todos os grandes feitos que nos entram pelos olhos adentro através da monstruosa máquina de comunicação controlada para esse mesmo fim podem ter a sua raiz e fundamento na sombra, ou no deserto, na carne e na pulsão desse Chuck Yeager que percebe que o universo como testemunha é mais importante do que todas as parangonas ou luzes da ribalta. Corpo e alma respondendo ao apelo inflamável do demónio escondido nas alturas e não ao brilho do dinheiro e da fama. Se toda a grande arte pode ser uma oposição entre a ordem das ideias e a ordem natural, vamos acompanhar um tratado sobre a ordem intrínseca, ontológica, de um diletante, e a ordem do espectáculo de uma nação. 

Daí a estrutura e o movimento estranho e surpreendente da montagem de Kaufman: a primeira hora é praticamente um Western, crepuscular e no fim da linha como Sam Peckinpah soube fazer dolorosamente. E Chuck Yeager (Sam Shepard numa entrega e confiança calada à Eastwood) aparece como um escorraçado ou um retirado nesses outonos tardios (os incêndios, castanhos e os escuros pôr-do-sol confirmam esse sangue temperamental), a beber e a não se importar com o dia de amanhã, caçando raparigas em flor e estando perfeitamente preparado para mais um trabalho, que o irá fazer no seu melhor, mesmo com costelas partidas. Pela segunda hora, um pouco menos, aparecem os oficiais, o Estado, a presidência, assustados pela grande potência rival, no caso e nessa data a Rússia, poder ridicularizar a América roubando a bandeira do progresso e do pioneirismo. Aí a narrativa esquece por completo Yeager, focando-se no espectáculo, no circo, no concurso, misturando a sede de glória dos maçaricos como o referido Gordon Cooper ou profissionais bondosos como o John Glenn de Ed Harris. 

As tentativas de descolagem vão sendo feitas, os espiões entram em funcionamento, a ciência começa a medir as suas garras com o instinto e a prática, o famoso macaco ultrapassa os astronautas insuperáveis, e o fantasma de Yeager continua a não largar o mosaico, assombrando-o nos interstícios possíveis. Se tivermos em conta aquele instante de raiva onde o grupo reclama dos seus direitos e brio, até isso advém da recordação do solitário que só vislumbraram. E é essa grande, humilde e arriscada estratégia de Kaufman que produz esta dialéctica cáustica ou ambivalência reveladora da nossa noção de progresso ou modernidade: uma certa humilhação dos Heróis do Espaço a lutarem pelo segundo, terceiro e demais lugares depois dos Russos e do símio; a equiparação a esse mesmo símio, num embaralhar de toda a genealogia; as suas esposas a perceberem o jogo e a elevarem-se para lhes manter os desejos primitivos acordados; o azedume do episódio que acontece a Alan Shepard, que teve o azar de num determinado momento estabelecido pelo poder se transformar em pedra na engrenagem; Gordon a dormir antes de concretizar o seu sonho, uma das últimas imagens e imagem perfeita do heroísmo dúbio. E isto dita toda a posta-em-cena e sentido visual: quando finalmente se descola e se tem todo o espaço sideral e mais além para conquistar e maravilhar, o paroxismo estético de 2001: A Space Odyssey não entra em campo; muito já foi vulgarizado e o máximo que se arranja é uma actualização bastante conseguida do efeito Kuleshov - John Glenn e as maquetas a renovarem o poderio e a magia de Hollywood. 

E depois disso a outra história, o outro cinema, a loiça e o ouro que importa, sempre novo e experimental, lírico e estilhaçante, como se o legado de Peckinpah fosse como foi directamente para Michael Cimino. Yeager, afastado dos noticiários, volta a tomar conta do terreno ou do duelo, único cowboy possível, fazendo ver que o género americano por excelência tratava da terra, da ligação primeira e telúrica, ancestralidade e causa social despida de agendas políticas, combatendo-as até se chegar a outra situação, enquanto que esta nova corrida à última fronteira prefere a superficialidade e inutilidade da fama; e é esse bailado imaculado e celestial usufruído pelos astronautas na celebração triunfal que em fusão apreendida em Eisentein vai escancarar o que eles sabiam e não conseguiram dizer: quem a todos inspirou não tem o nome na História, nem dito à frente das câmaras televisivas, bicho-do-mato absolutamente moderno que irá fazer mover montanhas e possibilitar epifanias. Peckinpah, Cimino, Kuleshov, Eisenstein, mas também o registador Frederick Wiseman que ao ligar rotinas e universos opostos chega ao produto essencial, à essência que é Chuck Yeager e a sua moral. The Right Stuff é então sobre o material certo do tempo que trata, sobre as alegorias das cavernas, sobre os muros e raças de hoje, na nova América ou no médio oriente. Sem limites. 

Muitos outros filmes nasceram depois daqui, das propaladas superfícies fantásticas e do fatal fundo nostálgico da superação nossa – do Apollo 13 de Ron Howard até blockbusters sofisticados tipo Armageddon – alguns até bonitos e sinceros, outras vezes carregados de panache enjoativo ou encadernados a patriotismo balofo, mas nenhum complexificou como o petardo de Kaufman a vontade fulgurante do indivíduo e a necessidade de um colectivo num tempo e num espaço simbólicos. Marcado por bifurcações, ramificações e explosões, para dentro e para fora, como nos despojos de uma estrela cadente. Se tantas vezes se compartimentou a poesia, a ciência e a justiça, aqui temos tudo misturado e inteiro como num fresco, pela coragem do gesto. Uma boa viagem a todos.

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