quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Year of the Dragon (1985) de Michael Cimino



por João Palhares

Uma cadência, em música, é o fim de uma linha ou de uma ideia melódica. Há-as de vários tipos: perfeitas, imperfeitas, interrompidas... E eu não conheço quem mais apaixonadamente fale delas do que Oleg Martirosov, professor de piano esloveno nesta nossa cidade de Braga. Elas revelam-se-nos por darem uma ideia de resolução e libertação, escondendo-se às vezes numa música por haver dúvidas lançadas pelos compositores em relação à sua tonalidade ou por haver vozes simultâneas em acção, linhas melódicas a atravessarem linhas melódicas, como no Das Wohltemperierte Klavier de Bach. Era assim que ele mais gostava delas, porque era preciso encontrá-las e realçá-las na interpretação, o que basicamente provava que não basta executar uma pauta mas é preciso compreendê-la e estudá-la profundamente e independentemente da técnica, que é sempre secundária. Descrevia mesmo algumas construções de cadências como passeios prolongados no Céu, em diálogos com os anjos no firmamento até se acordar e se descer à terra. 

Em Mahler, compositor da sinfonia da Ressurreição que se ouve em Year of the Dragon, para a qual dispôs os músicos numa grande elevação ao lado do coro e os fazia mover de vez em quando para os corredores atrás dos camarins para se ouvirem tocar ao longe (como se nos estivessem a chamar do outro mundo), as cadências parecem-se prolongar infinitamente e isso dá-nos ora a ideia de estar sempre em diálogo com os anjos ora a de embarcar numa travessia trágica e angustiante, sem vislumbre ou possibilidade alguma de libertação, presos no meio de batalhas entre vozes celestiais e tempestades retumbantes. Porque, como dizia Mahler, “uma sinfonia tem que ser como o mundo. Tem que conter tudo.” Isto atravessa toda a sua obra mas talvez se sinta mais profundamente no terceiro andamento da sexta sinfonia e no último da segunda, a da Ressurreição, sinfonia coral e total que demora uma hora e meia a interpretar. É este último andamento (o maior dos cinco) que Cimino usa por duas vezes no seu filme, libertando a sua veia viscontiana e fazendo uma das mais belas utilizações da chamada música clássica num filme, ao lado da de Bruckner em Senso por Visconti e da de György Kurtàg por Pedro Costa em No Quarto da Vanda

Cimino chegou a Mahler por meio de fins que rimam com princípios. Quando os Cahiers lhe sugeriram em 1985 que por começar e acabar o filme com um funeral dá a ideia de que tudo recomeça e se há-de repetir, ele respondeu que “não, não. Um novo início é sempre positivo. Stanley tem o mérito de ter revelado o problema. Tornou visível o lado oculto das coisas alcançando ao mesmo tempo um conhecimento de si mesmo. Encontra esta rapariga, a Tracy, e é um pouco a exemplificação do facto de que se se combate uma guerra durante muito tempo, acaba-se por ficar muito próximo do inimigo. É a morte de qualquer coisa, mas também o início de outra coisa. Foi por isso que me servi da sinfonia da “Ressurreição” de Mahler. Há qualquer coisa de majestoso no florescer de algo que renasce da morte.” 

Year of the Dragon é também “como o mundo”. Contém tudo, numa fervura que parece durar milhares de anos desde o aparecimento das primeiras dinastias chinesas, passando pela construção das linhas de caminho de ferro na América até estar mais perto do que nunca do seu ponto de ebulição nas próprias linhas de comboio (será coincidência?), num duelo a tiro de tirar o fôlego entre Stanley White (melhor papel de Mickey Rourke?) e Joey Tai (John Lone). Tudo, como funerais em que a namorada de White - Tracy, a jornalista - olha ressentida para as lágrimas de luto dele pela mulher como quem pensa que a ama mais do que a ela, ao operário chinês que se liberta da multidão de jornalistas para dar os seus sentimentos ao polícia, na sequência em que se ouve Mahler pela primeira vez e a ligação entre a imagem e a música provoca arrepios e sensações totalmente novos. Freiras letradas em dialectos chineses, Tracy em silhueta na noite de Nova Iorque, coisas perfeitamente banais como White a pôr o casaco na cadeira e Louis - o seu amigo de infância, saberemos muito depois - a pô-lo no cabide, primeiro sintoma de uma relação complexa de retiradas e investidas para o lado que cada um deles acha ser o da razão. Nada mau para quem disseram não saber construir um filme. E a cena em que Rourke põe o chapéu na mesa dos líderes da máfia chinesa, dá a volta, manda as suas bocas e quando a câmara corta para o lado de cá da mesa e o enquadra só a ele, pega no chapéu e sai porta fora? 

O virtuosismo técnico de Cimino é evidente, só que ele não o usa seja para fazer um policial banal seja para fazer um eficaz, inserido na grande tradição do género. Não, constrói um filme em conflito permanente mas porque o quer construir dessa maneira. A incoerência é só aparente porque a meta é outra. Sob o signo de Mahler, vai de cena em cena sem nos dar a hipótese de libertação a nós ou a Stanley, que com o seu instinto suicida só consegue atingir os que lhe são próximos, ficando para sofrer e se atirar para a frente das próximas balas. É uma cadência interminável mas trabalhada conscientemente, sendo inseparáveis o conteúdo e a forma. Conta-se que Rourke teve que seguir uma rotina física delineada por Cimino para aguentar a exigência do papel. E vendo-o entrar em cada cena numa pressa desesperada, batendo portas e movendo mundos, acreditamos nisso. Tanto que no fim do filme, quando Stanley entra de rompante na marcha fúnebre de braço partido e com gesso, ainda em batalha, com gritos na sua direcção, de cá e de lá, Cimino só pode acabar a sua história congelando a imagem, a única cadência possível. 

Volta a achar-se prodigioso o controlo de Michael Cimino nestas cenas que só podem ter sido ensaiadas e trabalhadas ao mais pequeno pormenor. E se o grande cineasta instintivo americano é afinal o mais laborioso dos artesãos? São coisas incompatíveis? Quando se deixar de discutir os conflitos de certos artistas com os seus mecenas e com o seu público (Griffith, Stroheim, Chaplin, Cimino) talvez se possam discutir e descobrir, finalmente, as coisas que interessam. 

O trabalho, só fica o trabalho. O resto desaparece. 

Foi o que aconteceu com Gustav Mahler.

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