quarta-feira, 29 de março de 2017

Gremlins 2: The New Batch (1990) de Joe Dante



por João Palhares

Nos anos 50, além dos monstros do Id de Forbidden Planet (que contaminavam também uma indústria de cinema que rebentava por dentro com westerns e melodramas cheios de raiva e de cor) e dos outros monstros que invadiam o nosso planeta (foi a década por excelência da ficção científica no cinema, como se disse na folha de The Thing, de John Carpenter), a televisão começava a chegar em força a casa dos americanos e rivalizava com o cinema pela atenção deles, cimentando os grandes formatos e o 3-D, armas do cinema para convencer as famílias a sair de casa e combater a televisão. Enquanto o senador Joseph McCarthy levava a cabo a sua terrível caça às bruxas, enquanto a ameaça nuclear chegava às escolas e aos lares dos americanos, enquanto Jack Arnold realizava os seus melhores filmes e William Castle assustava os seus fãs com experiências de projecção cada vez mais elaboradas, macabras e mirabolantes, Joe Dante assistia e retinha tudo para referência futura.

Escrevendo em revistas como a Castle of Frankenstein ou para o Film Bulletin durante os anos 60, onde falava dos filmes mais obscuros que apanhava nas matinées de Sábado ou em sessões duplas pela madrugada fora (e cujos trailers recupera ainda agora com amigos realizadores para o seu site, Trailers from Hell, com um pequeno comentário opcional de um deles a situar o filme e os realizadores), em 1968 acaba um grande e megalómano projecto com o amigo John Davison, chamado The Movie Orgy, uma montagem com várias horas de trailers, trechos de filmes e programas de televisão dos anos 50 combinados de forma a contar uma história e que só devem exalar o amor que Dante lhes tem. “É um filme que eu e o Jon Davison - o produtor de Robocop e Airplane! -, fizemos nos anos 60 com filmes perdidos antes de entrarmos na indústria do cinema”, disse Dante ao site alemão screen/read. “Éramos coleccionadores de filmes e conhecíamos outros coleccionadores, e havia bibliotecas que fechavam portas e portanto nós conseguíamos ficar com os restos e coisas que lá estavam. Nós uníamo-los e acabou por se tornar num programa de sete horas com vários filmes diferentes intercalados com reclames e programas de televisão, filmes educacionais e o que quer que porventura tivéssemos à mão. Tinha sempre uma espécie de atitude anti-guerra e anti-sistema porque eram os anos 60 e era aí que nós estávamos. Tornou-se muito popular, e por causa desses pedaços todos de película 16mm unidos nós só tínhamos esta única cópia para transportar. Passámo-la na Universidade de Columbia, na NYU e na Universidade de Notre Dame e noutros sítios para ajustar um bocado os nossos rendimentos. A certa altura até escreveram sobre ele na The New Yorker. Veio um tipo a uma exibição e disse-nos que queria escrever sobre o filme. E nós entrámos em pânico porque não tínhamos os direitos de nada. Nem sequer sabíamos o que algumas daquelas coisas eram! Portanto estávamos mesmo preocupados que pudéssemos entrar em sarilhos mas conseguimos convencê-lo a deixar os pormenores de lado.”

“Normalmente alugávamos o filme que íamos passar e púnhamo-lo num projector, mostrávamos um bocado e se se tornasse aborrecido cortávamos para a nossa bobina de coisas que tínhamos juntado. E depois rodávamos para o outro projector para a próxima parte do filme e voltávamo-lo a ligar. Mais tarde percebemos que era melhor só comprar cópias e cortá-las do que alugá-las. E, portanto, ao longo dos anos tivemos versões diferentes de durações diferentes e finalmente pusemos tudo de lado, simplesmente, e continuámos com as nossas vidas e com as nossas carreiras. Depois, à volta de cinco anos atrás, eu limpei aquilo, digamos, e fiz um vídeo. A versão mais próxima que consegui encontrar tinha cinco horas. Duas horas tinham desaparecido, de alguma maneira, no caminho. Portanto exibimo-lo aqui em Hollywood no New Beverly Theatre e eu estava um bocado curioso para ver qual ia ser a reacção. Estava tão datado que imaginei que ninguém o ia entender. Mas na verdade foi um sucesso fenomenal, quer dizer, as pessoas não só não saíram como ficaram para aquilo tudo! Na verdade está - digamos que - desenhado para se sair, comer uma pizza e depois voltar e não se perder nada, realmente. E então esta reconstrução foi muito popular e passou mais umas quantas vezes. Levámo-la a Veneza onde eles fizeram mesmo legendas italianas para as cinco horas todas, o que deve ter sido um bom regalo, e passámo-lo como parte do festival Cine-Excess em Londres e mais uns sítios. E parece ter sempre bastante sucesso. Provavelmente vamo-lo mostrar outra vez este verão numa sala diferente aqui em Hollywood. Mas o truque é sempre não se cobrar entrada. Porque como não temos os direitos para nada que lá está a única maneira de o mostrar em público é não cobrar.”

Longa citação mas que muito nos interessa não só para perceber o próprio trabalho de Joe Dante, que na sua carreira futura havia de dar uso a muitos destes ensinamentos práticos (os filmes dentro dos seus filmes: os mais importantes que vêm à cabeça são o It’s A Wonderful Life que vimos este Natal em várias cenas do primeiro Gremlins, o The Wolf Man em The Howling, o War of the Worlds em Explorers, etc, etc) mas também para perceber melhor a passagem dos anos 80 para os anos 90, dos samples no hip-hop ao trabalho de Quentin Tarantino, cujos princípios serão os mesmos ou, pelo menos, muito parecidos. Como Isaac Hayes, Curtis Mayfield ou George Clinton, que visitavam os anos 90 com as suas melodias manipuladas para ajudar os Snoop Doggs, os Dr. Dres ou os Notorious B.I.G.s deste mundo a dinamitar o sistema, também a ficção científica e o terror dos anos 50 nos visitavam em filmes mais recentes para fazer o mesmo.

Saído do pequeno sucesso de The Movie Orgy, Dante é recomendado por Jon Davison a Roger Corman, que o põe a trabalhar como montador de trailers na New World Pictures, que era por esta altura escola e plataforma de lançamento para uma segunda geração de realizadores, actores e argumentistas (depois de Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, Jack Nicholson, Monte Hellman ou Martin Scorsese), como Jonathan Demme, Ron Howard, James Cameron ou John Sayles. Não tardou, portanto, até que Corman o incumbisse de um projecto, Hollywood Boulevard, fruto de uma aposta de Corman com Davison em como conseguia produzir o filme mais barato de sempre. Usando trechos de outros filmes produzidos por Corman, Dante voltava a fazer colagens de material antigo, pondo-o em diálogo constante com o material original que ia filmando, o que se tornou obsessão primordial para todo o seu trabalho.

Depois de Piranha, feito também para a New World Pictures, chama a atenção de Steven Spielberg, que para além de facilitar o lançamento desse filme o chama para Twilight Zone: The Movie, em que assina o episódio mais fascinante e bem conseguido, remake do mítico episódio It’s a Good Life, da também mítica série televisiva de Rod Sterling. Os desenhos animados (outra das paixões de Dante, que chegou a pensar seguir carreira como ilustrador) ganhavam vida para efeitos bem trágicos e de pesadelo, manifestações dos monstros do Id de uma criança habituada a ter tudo o que quer. Spielberg mexeria os cordelinhos da indústria várias vezes para Dante continuar a fazer filmes, que tinham pouco sucesso comercial. “Trabalhei para o Roger nos anos 70”, disse Dante ao A. V. Club, “e trabalhei para o Roger outra vez há um par de anos numa série na internet, e tenho que vos dizer que as recomendações que recebi do Roger durante a série foram as melhores recomendações que tive em 30 anos na indústria do cinema. Porque eram mesmo úteis. Não estava o ego de ninguém em causa. Não havia ninguém a tentar impressionar o patrão. Nenhuma esposa disse “O tipo devia ter um cão.” Estão a ver, nada dessas coisas. Era simplesmente um cineasta a dizer-nos como é que achava que o filme podia ficar melhor.

“Provavelmente abriria uma excepção para Steven Spielberg, cujas recomendações também eram inteligentes, mas eu tive sorte, trabalhei para dois cineastas seguidos. Trabalhei para o Roger, e fui do Roger para Spielberg, e ambos sabiam imenso sobre filmes, e eram inteligentes em relação a filmes, e tinham experiência. Depois dessas experiências, trabalhei para imensa gente que não sabia grande coisa sobre filmes e que não sabia nada sobre fazer filmes, só sabia como os vender. Tornava- se muito frustrante, porque fui mimado. Quer dizer, primeiro trabalhei para o Roger, depois trabalhei para o Steven. Depois, quando deixei de trabalhar para o Steven, trabalhei num filme para um estúdio que mudou de gerência a meio da produção e não se importava mesmo no que estava na calha, desde que as calhas fossem feitas, e percebi que é mais difícil fazer filmes quando não se tem um mentor.”

Gremlins 2 entra aqui. Sem interferências do estúdio, Joe Dante liberta os seus demónios no edifício de uma grande corporação que controla uma estação de televisão, cadeias de fast-food e até laboratórios de investigação científica (controlados por Christopher Lee, estrela cimeira dos estúdios Hammer de Inglaterra, especializados em cinema de terror). Apresentado pelos Looney Tunes – pela mão de Chuck Jones – e onde os dois assistentes de Lee se chamam Martin e Lewis (e a homenagem a Jerry Lewis prolonga-se ainda na escolha de Kathleen Freeman para o papel de Microwave Marge), podemos ter já uma ideia da selvajaria e da corrosão que se vão propagar pelo edifício, que podia muito bem ser um estúdio de cinema. Conseguem chegar também à projecção do filme, uma piada que os cabeças de estúdio não perceberam mas que faz Dante regressar aos seus tempos de DJ sets em escolas e universidades com as suas bobinas e os seus projectores.

Lembrando a introdução de The Howling, filme de '81 em que o Doutor George Waggner (nome do realizador de The Wolf Man, de 1941) fala do inconsciente e dos instintos animais que não se podem recalcar e voltando a este filme que reúne os monstros e demónios de vários séculos de literatura e das várias décadas de cinema, criados e conjugados pelas privações e espezinhamentos de todas as sociedades ao longo de todas as épocas e em todos os cantos do mundo (depois viriam os brinquedos com chips militares embutidos que semeiam o caos nos subúrbios ou os soldados mortos na guerra do Iraque que regressam à vida para votar nas eleições), pode-se então perguntar: Não será preciso comer depois da meia-noite, de vez em quando? Afinal,

Even a man who is pure in heart 
and says his prayers by night, 
may become a wolf when the wolfbane blooms 
and the autumn moon is bright.

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