quarta-feira, 26 de abril de 2017

Heat (1995) de Michael Mann



por João Palhares

Lembra-se por duas vezes neste filme um conselho de um ladrão sábio à personagem de Robert De Niro, o Neil McCauley sem mobília em casa nem relações que durem: "Don't let yourself get attached to anything you are not willing to walk out in 30 seconds flat if you feel the heat around the corner". O Heat do título deste filme fabuloso de Michael Mann virá daí, como daí virão também a conduta e a disciplina ascéticas a que se submete McCauley até ganhar o suficiente para finalmente as poder renunciar. É ainda um ditame que nos pode reenviar para os heróis acossados dos filmes de Samuel Fuller, Nicholas Ray, Raoul Walsh, ou do outro Mann (Anthony), que escondiam as mágoas e o passado concentrando todas as suas forças no que faziam, refugiando-se no trabalho e afiando cada vez mais a espada que mata quem por ela vive. Também o tenente Vincent Hanna é como eles, vindo de si as palavras que justificam este refúgio e esta solidão, este esforço concertado por não confessar nem desabafar nada a ninguém: "I gotta hold on to my angst. I preserve it because I need it. It keeps me sharp, on the edge, where I gotta be." 

Mas por muito que apeteça fazer estas analogias e tecer estas afiliações, a verdade é que Michael Mann vai buscar muito pouco aos filmes. A sua obra é arrancada da realidade bruta, com filmes espaçados com intervalos de vários anos que passa em pesquisas obsessivas pelos palcos da má vida, pelos escritórios e pelas salas do poder ou pelos corredores poeirentos da história, com o mesmo interesse e a mesma paciência (e podemos lembrar as palavras de Fritz Lang, autor do While the City Sleeps que vimos em Maio do ano passado e tão obsessivo nas suas pesquisas como Michael Mann: “Um realizador devia saber tudo. Um realizador devia-se sentir em casa num bordel – o que é muito fácil – mas também se devia sentir em casa na Bolsa – o que já é um bocado mais difícil. Devia saber como se comporta o duque de Edimburgo, como se comporta um trabalhador e como se comporta um gangster”). Portanto Heat descreve os mecanismos de uma sociedade que se tem tornado cada vez mais complexa, postos em movimento pela morte de três seguranças e guardas responsáveis por um carro blindado. Mostra a reacção das forças policiais, que seguem uma pista deixada involuntariamente pelos assaltantes: a palavra “slick”, dita pela personagem de Tom Sizemore, Michael Cheritto, durante o assalto. Foi ouvida por um informador da polícia quando cumpriu pena com Michael na prisão e comunicada ao tenente Hanna pela obsessão e resiliência deste em chegar à verdade, quase à custa de um casamento. O filme mostra ainda como viaja a informação nos nossos dias, já perto das encriptações enigmáticas e dificilmente acessíveis de Blackhat, o último filme de Mann (e lembre-se o diálogo de De Niro com a personagem de Tom Noonan, que quase lhe diz que a informação anda pelo ar e é só preciso apanhá-la), provando que é preciso cada vez mais ser um grande profissional ou quase um génio para enganar e manipular o sistema. E provando também que é preciso levar muito a sério os códigos ascéticos de privação e de silêncio se não se quer ser apanhado. Não é nada romântica a vida de um bandido.

Mas claro que isto não é suficiente e Mann tem que engendrar um quadro vastíssimo que ponha em cena e ilumine todas estas obscuras maquinações. Foi um projecto de quase duas décadas e que teve uma primeira versão realizada para a NBC, em 1989 - um primeiro esboço desta grande rede de relações e implicações chamado L.A. Takedown. Seis anos mais tarde, a cadeia dos acontecimentos vai de acção em acção revelando pelo caminho as múltiplas consequências. Com todas as nuances e variações em escalas de planos necessárias para nos apercebermos delas e as entendermos. Dum olhar poderoso e imponente lançado por Tom Sizemore à curiosidade alheia quando De Niro arria o elo mais fraco do seu bando, que não desfaz até o homem curioso desviar o olhar, à encenação das várias operações, que se desdobram em pontos de vista e ângulos diferentes nos próprios cenários ou em cenários mais distantes, em câmaras de infra-vermelhos (como quando Pacino olha para De Niro dentro das carrinhas camufladas da polícia), com as pausas necessárias para sentirmos as implicações dentro do gesto mais pequeno ou da acção mais denunciada e decidida. O peso acumulado de tudo isto prepara-nos para a maior surpresa, tornando palpáveis as mudanças do espírito de De Niro quando, perto do final do filme, é informado do paradeiro do traidor do seu bando. Os azuis e os brancos apaziguadores da estrada que leva à salvação são desfeitos pelo grande plano que mostra o conflito interior de um asceta que sucumbe à paixão. Tudo o que precede essa viragem desesperada e impulsiva à direita demonstra tanto o génio do grande actor que é Robert De Niro como o do grande cineasta que é Michael Mann, fazendo antever a tragédia futura através de pequenos movimentos faciais mas que revelam um imenso turbilhão de emoções. "Don't let yourself get attached to anything you are not willing to walk out in 30 seconds flat if you feel the heat around the corner". O mandamento escrito a pedra é quebrado, o factor humano vem ao de cima.

E talvez por isto Heat (como a restante obra de Mann) continue a impressionar tanto e tanto, por mais vezes que se veja e reveja. Quanto tempo pode durar a frieza calculada de um profissional? Há uma tensão palpável entre desistir e fazer o que se quer fazer e continuar firme e fazer o que se tem de fazer. E como que para provar que percebe tudo isto e aquilo que está em jogo, Michael Mann, no final dos seus filmes, resolve esta tensão fazendo explodir as cores e as emoções, encenando uma catarse operática que atinge os seus pontos cimeiros em Thief, The Last of the Mohicans e no filme que hoje vamos ver. Sejam as luzes dos néons do parque de estacionamento de James Caan no filme de '81, seja aquele amanhecer sangrento e feroz do de '92, sejam os aviões a descolar e a aterrar no de '95, os cálculos e as negociações que tanto se quiseram fazer, falham, e os homens batem-se num estado de paroxismo puro, iluminados pelos lugares que os recebem como se estivessem à espera durante anos para fazer coincidir a sua natureza com o destino dos homens. E faltam palavras para o que se sente ao assistir a isso, quando a nossa emoção se sobrepõe às tentativas de ver uma construção e descrever sequências e planos como se fosse possível decifrar uma razão ou um significado para certas cenas resultarem e produzirem o seu efeito. Fica a admiração mais profunda. E segue-se o silêncio.

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