domingo, 2 de julho de 2017

67ª sessão: dia 4 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Realizado no inicio dos anos 20 do século passado, Greed como que "inaugurou" um dos capítulos mais infames da história de Hollywood - a luta dos estúdios e dos produtores contra a figura do realizador.

Se estamos na presença de uma obra onde a danação absoluta do Ser Humano tem uma correspondência formal ao mesmo nível, nada foi perdoado a Erich von Stroheim, que viu Greed como praticamente todos os seus outros filmes imperdoavelmente mutilados, à imagem do que depois Orson welles também experimentaria.

José Manuel Costa, director da Cinemateca, resume a questão nestes termos:

«"Anjo e demónio, brinca com o fogo do inferno e a luz do paraíso", dizia-se num texto de 1930. Greed foi o inferno de Stroheim, depois de ter começado por ser o seu paraíso. Obra charneira do seu trabalho, foi o momento em que ainda acreditou e, depois, a razão do fim de quase todas as crenças. Até à última volta de manivela foi, sem margem para dúvidas, o seu mais livre e coerente projecto, o seu manifesto e, em conformidade com isso, a obra da mais seca e total irrisão. Seguidamente, foi o alvo de uma histórica mutilação - também a mais extensa e discutida de todas - que, por sua vez, não deixou de ser base para alguns mitos e outras tantas, abusivas, simplificações.»

Greed é tão genial como infernal, ou genial porque infernal. Serão estes os ínvios caminhos que experimentaremos na nossa próxima sessão. Próxima terça, dia 4, na velha-a-branca.

Com apresentação em vídeo de Paulo Santos Lima, crítico de cinema, jornalista e professor Brasileiro que muito admiramos.

Stroheim, convidado pela Film Daily em 1927 para escolher o seu melhor filme e falar um pouco sobre ele, escolheu Greed e confessou que, "para mim, Greed era um grande filme. Não como foi lançado, mas na versão completa que nunca viu a luz do dia para além da sala de projecção do estúdio. A cópia que se lançou pode ser comparada a um romance ao qual arrancaram indiscriminadamente dois terços das suas páginas. O restante do romance foi o que se deixou de Greed para mostrar ao público. 

"A única coisa que McTeague precisava para ser um grande filme era alguém com perseverança suficiente e bastante conhecimento das fraquezas do carácter humano para pôr o sopro da vida nas personagens de (Frank) Norris. Isso eu tentei fazer. Que não tenha conseguido, em larga medida cobro ao facto de que os resultados dos meus labores nunca tenham sido mostrados por inteiro.

"Não estou desapontado por causa de Greed. Ao princípio fiquei amargurado, porque tinha trabalhado vigorosamente durante dois anos para tornar o filme fiel aos escritos de Frank Norris, mas o tempo e as provações e atribulações do cinema tornaram-me mais filosófico. E então, vim a perceber que o Destino acaba por pregar a sua pequena partida, afinal não foi The Merry Widow, feito exactamente em 11 semanas e dois dias, que me colocou entre os 10 principais realizadores do reino do cinema?"

Jacques Lourcelles, no seu fabuloso Dicionário do Cinema (nunca é demais repeti-lo), escreveu que "para todos os historiadores, Greed representa a maior obra-prima mutilada da história do cinema. A sua metragem, ao longo de adoçamentos sucessivos, passou de 9 horas a 2 horas e 30 (ou 100' a 24 imagens/segundo). É o único filme de Stroheim, com The Merry Widow, que é baseado em material não original (mas Stroheim alterou de tal maneira a substância inicial de The Merry Widow - isto é, a opereta de Franz Lehar -, que não resta praticamente nada dela). É também o único filme de Stroheim cujos heróis são primitivos a este ponto, quase primatas, em flagrante oposição à maior parte daquelas que se desenvolvem nessas histórias de príncipes e de aristocratas falidos que ele gostava tanto. As personagens de Greed são vítimas de uma tripla fatalidade que se pode dizer ser tanto hereditária como social e existencial, mas dando a essa palavra um significado particular que se aplica apenas a Stroheim. As paixões que os devoram (a avareza em Trina, a fraqueza de carácter e o alcoolismo em McTeague) têm com certeza uma parte hereditária mas difícil de detectar, particularmente tendo em conta o desaparecimento das sequências consagradas ao pai de McTeague. A fatalidade social é evidente, mas dá lugar àquela fatalidade específica ao universo de Stroheim e que pretende que todos os seres que ele descreve vão aos limites da decomposição e do declínio. Com ele, de resto, esta fatalidade assume um carácter arbitrário, subjectivo e "poético" que traduz a sua incapacidade em se manter afastado das personagens que criou ou em as representar com qualquer distanciamento. Nisso, ele opõe-se radicalmente a um Lang ou um Mizoguchi. Salientou-se bem que o seu naturalismo era o contrário de um romantismo secreto, não declarado, que nunca se consegue incorporar na obra. (Também é preciso dizer que, em Greed, as raras personagens positivas, como esse casal de velhos tímidos formado por Miss Baker e o proprietário do "hospital para cães" onde Marcos trabalha episodicamente, foram cortadas da versão definitiva.) Como sempre em Stroheim, a parte mais original do seu naturalismo situa-se ao nível sexual. É o desequilíbrio sexual do casal Trina-McTeague que provoca a sua queda, de que a traição de Marcus é só o agente exterior. De qualquer modo, este naturalismo só é convincente pelo relevo impressionante que a direcção de actores, manifestamente barroca, delirante e como que assombrada pelas obsessões íntimas do autor, dá às personagens. Obedecendo ao gigantismo da maior parte das empresas de Stroheim, a rodagem de Greed durou nove meses e custou 470.000 dólares. Stroheim exigiu que todos os episódios fossem rodados em exteriores reais nos próprios locais da acção (São Francisco, o Vale da Morte, etc) Só uma cena - o sonho do sucateiro Zerkow a encontrar a placa de ouro num cemitério - foi rodada em estúdio. Na versão conhecida, resta apenas um plano simbólico e enigmático de mãos a remexer a dita placa. Parece que houve pelo menos cinco montagens sucessivas do filme (neste ponto os comentadores estão longe de estar de acordo). As três primeiras eram de nove horas, sete horas e quatro horas; Stroheim teria querido lançar esta última versão em duas partes distintas. Em seguida, trabalhou com Rex Ingram numa versão de três horas que também não foi aceite. Houve enfim a montagem que conhecemos (10 bobines), renegada por Stroheim e resultante da compressão de uma versão estabelecida pela argumentista Junie Mathis sob a supervisão de Irving Thalberg. Foi June Mathis quem mudou o título original do filme McTeague (idêntico ao do romance) para Greed. A fusão (que teve lugar durante estes diferentes testes de montagem) entre a Goldwyn, companhia produtora do filme originalmente, e a Metro não ajudou a situação de Stroheim. Herman Weinberg, no seu trabalho, "The Complete Greed" (ver Biblio), reconstituiu em 350 chapas uma continuidade fotográfica ilustrando a maior parte do filme como Stroheim o tinha rodado. São representadas sessenta sequências (ou seja, quase tanto como o número que compõe a versão conhecida) no livro. A parte mais surpreendente destas sequências diz respeito às relações - um verdadeiro filme dentro do filme - entre Maria, a mulher de limpeza que vende o bilhete de lotaria, interpretada por Dale Fuller, e o sucateiro-usurário Zerkow, interpretado por Cesare Gravina, o Ventucci de Foolish Wives. Não só os intérpretes destas personagens são impressionantes como também as suas aventuras, completamente características de Stroheim. Maria dá objectos a Zerkow para venda. Têm uma criança que não vive. Na noite do enterro, Maria recusa que Zerkow coloque o caixão da criança na carroça onde ele transporta habitualmente a sua mercadoria. Senta-se ao lado de Zerkow, levando o pequeno caixão aos seus braços (duas fotos impressionantes dessa sequência). Mais tarde, Trina descobre Maria assassinada (a cena, vista em teatro de sombras, resulta numa das mais belas fotos do livro). O culpado não é outro senão Zerkow que queria o dinheiro da sua companheira e que vamos encontrar afogado, sem que saibamos se se tratou de um acidente ou de um suicídio. Essa odisseia das duas personagens fornecia um paralelismo fundamental à história das relações Trina-McTeague. Outro paralelismo, que foi conservado, é o dos pássaros que McTeague salva e mantém enjaulados (o gato ameaça-os como Marcus ameaça McTeague), e que depois solta no deserto, de qualquer forma inutilmente, porque o último pássaro vai cair logo, morto. A ausência de várias sequências amputa gravemente o conhecimento que o espectador tem das personagens (ex. supressão do pai de McTeague que era viciado em álcool, frequentava prostitutas e morreu num café) ou ainda das relações que se formam entre eles (começo da amizade McTeague-Marcus) prejudicando também a construção poética e alegórica sobre a qual se baseava todo o filme. Ausência igualmente muito prejudicial para a errância de McTeague depois do seu crime. Estes cortes afectam também o ritmo de conjunto do filme, no interior do qual as sequências que se desenrolam no Oeste e no deserto não nos parecem merecer a admiração que suscitaram em muitos comentadores. Os esforços inauditos que elas exigiram aos actores e aos técnicos, a trabalhar num calor tórrido, e a fortuna que custaram mal se notam na compilação que subsiste na versão conhecida. O livro de Weinberg, que é agora parte integrante do conhecimento que se tem do filme e que se tornou, também, um fragmento deste filme, prova claramente que uma montagem um pouco mais longa (com mais 30 ou 45') teria sido viável e infinitamente superior à versão conhecida: era sem dúvida o caso da 4ª montagem Stroheim-Ingram. Thalberg, aos olhos de alguns intocável, cometeu aqui sem dúvida uma falta irreparável. E foi quase sem exagero que Stroheim pôde dizer: "Eu acho que fiz um só filme na minha vida e ninguém o viu. Os restos pobres e mutilados dele foram projectados sob o título de Greed".

"BIBLIO.: quatro trabalhos ajudaram grandemente ao conhecimento progressivo que tivemos do filme: 1) a montagem da versão "completa" publicada em inglês em 1958 pela Cinemateca da Bélgica em Bruxelas (a partir de um exemplar pessoal do argumento de Stroheim conservado pela sua viúva, Denise Vernac); 2) o nº 83-84 (1968) de "L'Avant Scène": continuidade narrativa do filme tal como está na sua versão conhecida, à qual se acrescentam resumos de sequências cortadas ou não rodadas, como se pôde descobrir a partir do argumento de Bruxelas; 3) o volume que contém (e confronta) o argumento de Bruxelas e uma descrição da versão conhecida, Lorrimer, Londres, 1972, re-editado pela Faber and Faber, Londres, 1989. O volume também contém textos de Stroheim, Jean Hersholt, William Daniels, Herman G. Weinberg, Joel W. Finler; 4) por fim, o trabalho precioso de Herman G. Weinberg: "The Complete Greed", Arno Press, Nova Iorque, 1972, depois pela E.P. Dutton, Nova Iorque, 1973. Além da reconstituição do filme, o livro inclui uma evocação da rodagem em 50 fotos."

Até Terça!

Sem comentários:

Enviar um comentário